Moçambique

Em janeiro de 2012 eu e o meu marido, Rodrigo, estivemos em MOÇAMBIQUE, na África, para um trabalho voluntário. Foi uma viagem sem os “filhos na mala”, mas vou postar mesmo assim, pois foi uma experiência de vida incrível…

MOÇAMBIQUE é o 4o pior país do mundo no índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Nações Unidas, publicado em 2/11/2011. Está na posição 184 num total de 187 países analisados.

Só para compararmos o Brasil ficou em 84. Nesta lista a Noruega ocupa a primeira posição e o Congo a última. A África ocupa todos os 20 países mais pobres…

 

Os preparativos: incluíram visto, vacinas (hep. A, meningite, cólera, difteria), compra de repelentes especiais e medicação preventiva para malária… E orientação para apenas comer alimentos cozidos e usar água mineral até para escovar os dentes!

O grupo: Reunimos o grupo no aeroporto de Joanesburgo, pois eu e o Rodrigo havíamos vindo antes do restante para uns dias de turismo na África do Sul: 13 voluntários e 26 malas gigantes! Difícil colocar em números tantos sonhos e trajetórias diferentes que culminaram naquele encontro: éramos 7 médicos (3 pediatras, 2 clínicos e 2 cardiologistas), 4 estudantes de medicina, 1 enfermeira e 1 evangelista, vindos de 6 cidades diferentes (Uberlândia, Goiânia, Rio de Janeiro, Araguari, Brasília e Frutal). 10 mulheres e apenas 3 homens. A maioria ligada a alguma igreja evangélica, mas nem todos. A maioria jovem, apenas 4 com mais de 30 anos. Poucos com experiência em projetos deste tipo, mas no Brasil (incluindo eu e o Rodrigo). Alguns que nunca haviam saído dos pais, inclusive uma que nunca tinha viajado de avião… A maioria (nos incluindo) realizando um sonho antigo de algum dia fazer um trabalho missionário na África… E todos voluntários, gastando o próprio dinheiro e tempo, e com muita vontade de ajudar um pouco este povo tão sofrido…

 

 

O alojamento: Ficamos hospedados no Seminário Nazareno, mantido por um casal de americanos, que vive em Moçambique há 25 anos, e tem um bonito trabalho de formação de pastores. Era um local distante e afastado, mas seguro e com água tratada (ou seja, os que não estavam paranóicos podiam escovar os dentes com a água da pia mesmo). Era uma simples mas agradável casa com várias camas de beliche, uma enorme sala de estar com cadeiras de plásticos, mas apenas 1 banheiro! A operação banho era demorada… quase 4 horas! Na maioria das vezes ficávamos para o final (éramos os mais ‘velhos’) e só entrávamos no chuveiro depois da meia noite…

Como éramos o único casal, tivemos direito até a cama de casal! Com o mosquiteiro ficava até romântico…E ao chegarmos à noite, o trabalho ainda não havia terminado! Tínhamos que organizar e separar as doações e medicações para o dia seguinte… Ufa! Foi bastante cansativo!

 

 

A alimentação: O Rodrigo, de bom grado, assumiu com excelência a cozinha. Pela manhã, acordava antes de todos e fazia o ‘mata bicha’ (como eles chamam o café da manhã) reforçado, com torradas na manteiga, suco, café, leite com chocolate e até omelete… A maioria dos dias simplesmente não almoçávamos, comíamos algumas bolachas e o almoço (ou já era jantar?) era lá pelas 4 ou 5 da tarde, quando acabava o atendimento. Um dia experimentamos a xima: a comida mais comum entre eles, uma ‘papa’ de farinha de milho sovada, bem branquinha. À noite sempre um delicioso jantar (ou era a fome que era grande?). Tivemos até jantar à “luz de velas” (faltou energia)! Emocionante…

Locais de Atendimento:

Nosso 1º dia de trabalho foi no Orfanato Arco-Íris

Dirigido pelo pastor Jessé, um missionário brasileiro que está em Moçambique há 17 anos. Conhecemos as instalações, muito limpas e organizadas, com um mosquiteiro para cada criança (coisa rara para a população). Algumas destas crianças do orfanato são realmente órfãs. Mas a grande maioria foi levada para lá por algum familiar por não ter condições de cuidar. Existem muitos orfanatos assim na cidade. No natal, por exemplo, muitos são buscados para passarem as festas em casa. No orfanato são bem cuidadas, educadas, evangelizadas e protegidas dos abusos que são frequentes, inclusive sexuais. E depois, hora de colocar a mão na massa!

 

 

Nos dias seguintes a realidade já foi bem diferente: atendemos em locais semi construídos (usados como igrejas) sem teto, sem janelas e sem portas (apenas os espaços nos tijolos, para que eles sejam colocados um dia). Um dia… Ou seja, havia apenas parede! Parecia aquela música do Toquinho “era uma casa muito engraçada, não tinha teto não tinha nada, ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão…

 

Pessoal da igreja local varrendo o local onde íamos atender…
Reparem que o chão é de terra batida e o teto de lona!

 

Alguns dias íamos com a van por ruelas que iam se tornando cada vez mais estreitas até que tínhamos que parar o carro e terminar de chegar ao local de atendimento a pé, carregando as malas com doações, medicações e com a nossa estrutura móvel (luvas, álcool gel, balança, material educativo, etc).

 

 

 

Alguns locais realmente nos assustaram. Estávamos incrédulos de que conseguiríamos realizar algum trabalho naquele ambiente, mas éramos “voluntários” e aprendemos na prática o significado desta palavra.  De repente começava a aparecer mesas, cadeiras, lona… E cerca de 30min depois já parecia até um postinho de saúde! Dava até para organizar sala de espera (com direito a animadora para as crianças), triagem (onde eram pesados, medidos e já recebiam vitamina), ‘consultórios’, farmácia, e até a ‘cozinha’ onde preparávamos leite. Mas tínhamos que improvisar: palpar abdome, por exemplo, tinha que ser em pé!

 

Torneira? Era pedir demais: Usávamos e abusávamos do álcool gel, mas imagina passar ele 40, 50 vezes sem ao menos lavar a mão uma única vez! Ao final do dia quando esfregávamos a mão formava aquele ‘macuco’ de sujeira…

Atendemos muita gente, com ‘borbulhas’ no corpo (bolhas), ‘comichão’ (coceira), ‘constipação’ (gripe), ‘tensão’ (pressão alta), ‘corpo quente’ (febre) e ‘prurgando’ (com diarréia).

 

 

 

 

E para complicar ainda mais as coisas a chuva apareceu, e nos fez companhia por longos 3 dias… inundando a cidade e tornando as coisas ainda mais difíceis…

 

Crianças nadando na poça da chuva como se fosse a melhor das piscinas…

 

Fizemos até “home care”… Visitas às casas de pessoas que não podia ir até nós…

 

Embaixo de sol…

Ou de chuva!

 

Entrando nos lares percebemos que a pobreza era ainda maior do que imaginávamos…

 

 

Vejam a cozinha das casas…

 

“Cozinha” de uma creche!

Fogão a carvão!

Criança cozinhando sozinha…

 

Vamos tomar um pico? Fizemos muita medicações injetáveis, o que era uma boa maneira de garantir que seriam tomadas. E as crianças não reclamavam!! Nem para pesar, medir ou serem examinados, era raro algum chorar! Tomavam sem nenhum cara feia… e (pasmem!) inclusive injeção, ou “pico” como eles dizem. Impressionante!!

 

 

Medicamentos: Levamos muitos medicamentos, mas chegamos a pegar das nossas farmácias pessoais de bolsa quando precisamos. Tentávamos dar o que fosse possível (antiparasitário, por exemplo) em dose única, ali mesmo, na hora do atendimento.

 

 

Água: Todos tomam água da torneira! E não é a torneira da pia, pois a grande maioria não tem água encanada… Eles buscam água na torneira comunitária… ou na bomba! Ou seja, ensinar a tomar apenas água filtrada? Como? Ferver a água? Muitos não tem energia elétrica… Usam carvão para cozinhar!!

 

Mãe (com um bebê nas costas) bombeando água com a ajuda de outros 2 filhos…

Mulheres buscando água na torneira comunitária e levando para casa na cabeça… (em plena capital do país!)

Barraquinha vendendo carvão para ser usado nos ‘fogões’

 

Banheiros: Todos evitavam ao máximo usar os ‘banheiros’ dos locais de atendimento, por razões óbvias. Como estava muito quente e quase não bebíamos água até que foi fácil. Mas ao final do atendimento, quando chegávamos na ‘civilização’ estávamos todos loucos de vontade!

 

“Banheiro”

Precisa dizer algo? Sem porta, sem teto…

 

Estórias de pobreza:

Este menino estava brincando com as outras crianças com seu irmão amarrado nas costas, o ouvido sujo de secreção purulenta (otite média supurada, atendemos muitas!) . Tinha 8 anos, seus pais estavam trabalhando e não havia nenhum adulto responsável por ele. E estava cuidando do irmão de 1 ano… Preparamos a medicação, explicamos cuidadosamente como usar o antibiótico, tentando simplificar ao máximo a dose e os horários, anotamos num papel, com 1 vidro em cada um de seus bolsos torcemos para que o tratamento fosse seguido…

Quando pensava que já tinha visto pobreza suficiente, ainda conseguíamos nos surpreender: atendemos uma criança com diarréia e ensinamos a mãe a fazer o soro caseiro com a colher medida: 1 copo de água, 1 medida de sal e 2 de açúcar. Ao final de todo o discurso da importância do soro, ela disse que não tinha açúcar em casa!

 

 

 

Leite: Fazíamos leite com chocolate e distribuíamos para todos os que estavam sendo atendidos. Uma senhora comentou que o leite era grosso: “a gente não tem costume de tomar leite assim”

 

 

Entregamos muitas escovas e pasta de dentes (‘colgeite’ como eles chamam o nosso tradicional colgate), e também roupas e sapatos novos. Uma senhora comentou “passei no médico, tomei leite e ainda ganhei o remédio e um par de sapatos, o que mais eu quero da vida?” Como eles podem ser tão felizes com tão pouco?

 

Comparando com o Brasil: Em 2009, Moçambique ocupava o 8º lugar do Índice de Pobreza Humana (IPH), com mais da metade da sua população vivendo abaixo da linha da pobreza… (Brasil 9,7%) Essa é a grande diferença em relação ao Brasil.

No Brasil ainda existe miséria, locais sem saneamento básico e outras condições sub-humanas de vida, mas são ‘bolsões’, ou seja uma favela no Rio, uma pequena cidade no interior do Nordeste… Em Moçambique a miséria é generalizada… a cidade inteira, o país inteiro e talvez o continente quase inteiro!

 

Mortalidade infantil: para cada 1000 crianças nascidas vivas, 80 morrem antes de completar de 1 ano (Brasil: 21 e Canadá: 5)

 

 

Visitei esta casa e encontrei uma garota de 11 anos cuidando do bebê de 2 meses (deitado na esteira) enquanto sua mãe trabalha…

A mãe não amamenta pois ‘tem a doença’ (SIDA)…

 

 

Brinquedos: Vimos inúmeras crianças nas ruas e quintais e nos chamou a atenção a absoluta ausência de brinquedos (até mesmo uma boneca ou uma simples bola)…

Em apenas 3 ocasiões vimos meninos com carrinhos feitos com material reciclável…

 

 

A alegria que nossos balões proporcionavam…

 

Os pés na imensa maioria das vezes estão descalços…

ou com sapatos muito velhos e desgastados…

 

As mulheres:

Todas as mulheres usam um pano amarrado na cintura por cima da roupa, chamado de “capulana”, parecendo uma saia.

Olhem só as cenas mais típica de Moçambique: Mulheres carregando enormes cargas na cabeça…

 

 

e mulheres com seus bebês nas costas, amarrados na capulana”…

 

Mulher carregando seu bebê (albino) na capulana…

 

Ou os 2 juntos!!!

 

Uma mala na cabeça e um bebê nas costas… sem a ajudadas mãos! É mole?

 

Mesmo que tenham homens andando ao seu lado são as mulheres que carregam… Como são guerreiras! A única coisa que não podemos dizer é que são consideradas “sexo frágil”…

Até eu tentei carregar um bebê moçambicano… eles ficam super quietinhos! Estão acostumados a ficar assim desde que nascem. Se brincar já saem do hospital assim… é o “bebê conforto” de lá!








Amamentação: A taxa de amamentação é alta… exceto quando as mães tem AIDS. Nestes casos são orientadas a não amamentar… Mas o coração dói, pois ali, naquelas condições, sem dinheiro para comprar leite adequado e sem estrutura para usar água potável, isto não deixa de ser um risco imenso para o bebê morrer de desnutrição ou diarréia, antes mesmo que possa morrer de AIDS…

 

 

3ª idade: Moçambique é um país de jovens. A expectativa de vida é de apenas 49,3 anos (só para comparar, no Brasil é 72 e no Canadá 82 anos). Apenas 3% da população tem mais de 60 anos

 

Taxa de Fertilidade: média de 5,46 filhos por mulher (Brasil 2,18)

 

Mãe e seus 5 filhos na passando em consulta…

Atendemos mulheres que queriam “jeitos a prevenir” (anticoncepcional) mas também “jeitos a conceber” (querem engravidar e não conseguem, às vezes já com mais de 1 filho)

 

um filho na frente e outro atrás…

 

 

Assim, muitas vezes são os próprios irmãos mais velhos os responsáveis por cuidar dos mais novos…

Crianças cuidando de crianças…

 

 

Família: A cultura moçambicana ainda aceita:

– poligamia (os homens tem mais de uma família tranquilamente),

– prostituição (tradicionalmente 6af é o ‘dia do homem’ e ele pode frequentar a zona de prostituição livremente), e

– pedofilia (não existe nenhuma lei caracterizando a pedofilia como crime!)

 

 

Tudo isso contribui para as assustadoras taxas de AIDS

Além da dificuldade de acesso aos exames e às medicações (diz que o governo só fornece para ‘quem já está muito doente’). E também a baixa adesão ao tratamento (muitos não querem se tratar ou abandonam o tratamento devido aos efeitos colaterais)

 

As escolas…

Índice de analfabetismo em Moçambique: 60% (mas há 25 anos era 93%…).

A população tem somente 1.2 anos de escolaridade média…

 

Fomos eu uma escola da periferia para fazermos atividades de prevenção.
Prof. Mário, extremamente educado e simpático nos mostrou a lista (escrita à mão) dos 63 alunos daquela turma, de 6 a 9 anos… Mas haviam apenas 43 naquele dia (mais de 30% de faltas). A escola na verdade é apenas uma sala de aula, no meio da comunidade com um banheiro externo (tipo fossa) onde as crianças passam a tarde, sem lanche… sem água… e apóiam no colo para escrever…

 

Nesta outra escola não havia bancos… e nem professor! Como havia chovido muito, os ‘chapas’ (transporte público improvisado) não conseguiram chegar para trazer os professores…

A língua oficial é o português

No entanto, o Recenseamento Geral da População e Habitação, realizado em 1997, mostrou que ela é língua falada em casa em apenas 6% da população. Na capital chega aos 25%. Apenas cerca de 40% dos moçambicanos declararam que sabiam falar português (na capital, 87%). Existem muitas línguas regionais, aqui principalmente a changana.

Algumas expressões nos fizeram rir, como quando o motorista pediu à garçonete um “palito para chupar o refresco”, ou seja ‘um canudo para tomar o refrigerante’…

 

A cidade… … é miserável, feia, suja e caótica!

 

 

A quantidade de pessoas na rua impressiona: assim, parados, conversando, sem ter o quer fazer, esperando a vida passar, afinal não tem trabalho, não tem lazer…

 

 

Aqui lixo se joga no… chão! Não há coleta de lixo!

Mas na verdade, segundo informou um missionário local “ela está até limpa”, pois foi limpa para os Jogos Pan-Africanos que ocorreram em setembro de 2011 e ainda não voltou ao nível ‘normal’ de sujeira…

 

 

Transporte público:
Não há transporte público suficiente levando a criação do transporte informal, conhecido como ‘chapa’, onde as pessoas são transportadas na carroceria de caminhões (igual ao nosso bóia fria, com uma diferença: no Brasil o bóia fria existe no interior da região menos desenvolvida do país… lá estou falando da capital do país!)

 

Todos os dias passávamos por um lixão e ficávamos face-a-face com as condições subumanas de sobrevivência. Em Moçambique 55% da população vivem abaixo da linha da miséria, com uma renda per capita de 1 real por dia! O salário mínimo é de 2.400,00 meticais (em torno 90 dólares), e muitos recebem menos do que isto…

 

Antes de irmos para Moçambique escutamos que um trabalho destes seria “tapar o sol com a peneira”… não deixa de ter razão… mas pelo menos um buraquinho, mesmo que minúsculo, nós tapamos!

 

 

Trouxemos na memória a imagem de um povo sofrido e extremamente necessitado… de comida, de educação, de saúde, de cultura, enfim de condições dignas de vida!

Mas que apesar de todas as adversidades, se adaptou e é feliz…

 

 

Uma verdadeira mistura de alegria x sofrimento, pobreza x beleza, necessidade x aceitação…

 

 

As malas que levamos cheias de medicações e doações não voltaram vazias…

Trouxeram estórias, sentimentos, emoções, exemplos de superação…

Recebemos muito mais do que demos…

Fomos levar tratamento para o corpo, e recebemos tratamento para alma e espírito.

Voltamos diferentes… foi uma lição de vida!

Que Deus abençõe aquele povo!

 

Nisto sabemos o que é o amor: Jesus deu a vida por nós. Portanto, também nós devemos dar a vida pelos irmãos. Se alguém possui riquezas neste mundo e vê o seu irmão passar necessidade, mas diante dele fecha o seu coração, como pode o amor de Deus permanecer nele? Filhinhos, não amemos só com palavras e de boca, mas com ações e de verdade ( 1João 13:16-18)

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